Enquanto os homens dormem



Por Alderi Souza de Matos em Revista Ultimato

Em conhecida parábola, Jesus utilizou uma expressão sugestiva ao dizer que, “enquanto os homens dormiam”, veio o inimigo e semeou erva daninha no meio do trigo (Mt 13.25). Ele estava se referindo ao que acontece no reino de Deus ou na igreja, onde, por causa da negligência dos líderes ou da hipocrisia humana, existem indivíduos que não são verdadeiros discípulos. Essa metáfora também pode ser aplicada ao que vem ocorrendo no Brasil atual. Enquanto os evangélicos e muitos outros parecem adormecidos ou inconscientes, estão se insinuando na vida nacional, por vezes de maneira sutil, realidades preocupantes que poderão ter consequências históricas dolorosas nos anos que virão.

Muitos dirigentes do país defendem políticas, valores e objetivos de longo prazo que se chocam com importantes convicções democráticas e cristãs. Por exemplo, já por diversas vezes se tentou implantar o chamado “controle social da imprensa”, um mecanismo de censura aos órgãos de comunicação em nome de supostos interesses sociais. Recentemente, foi promulgado um decreto presidencial que determina a participação de integrantes de movimentos sociais nos órgãos públicos e nas decisões do Estado. À primeira vista isso parece louvável, até que se percebe que boa parte desses movimentos são alinhados com ou controlados pelo próprio governo, ficando excluídos ou marginalizados os grupos que partilham de outras convicções.

No campo da moralidade, é perigoso quando os governantes arrogam para si a prerrogativa de impor sobre a sociedade sua visão particular, por meio da legislação e da educação. É legítimo o esforço de resguardar os direitos de minorias, como os homossexuais. No entanto, as políticas públicas em relação a esse grupo têm ido muito além da proteção de direitos, utilizando-se o sistema educacional para incutir nas crianças e nos jovens a ideia de que os relacionamentos homoafetivos são algo natural e saudável. Outra área em que se percebe um ataque concentrado contra a visão cristã da família é o esforço no sentido de ampliar as fronteiras legais do aborto, planejando-se utilizar para isso a rede pública de assistência médica. Uma sociedade não pode ser justa se não protege os seus elementos mais frágeis, como os nascituros.

Algo ainda mais inquietante para muitos cidadãos é a clara simpatia das autoridades superiores por uma ideologia hegemônica. Uma das principais evidências disso é a política externa do Brasil, na qual se aplica à perfeição o ditado segundo o qual aqueles com quem andamos dizem quem nós somos. Soam falsas as afirmações dos que, em casa, fazem juras de amor à democracia, mas, nas relações internacionais, apoiam e louvam regimes autoritários. É o que tem ocorrido em relação a países como a Venezuela, o Irã, a Turquia e, mais recentemente, a Federação Russa. Particularmente sintomática é a atitude do governo brasileiro com relação a Cuba. São contínuas e efusivas as manifestações de admiração por esse regime antidemocrático e violador de direitos humanos. O movimento denominado “Foro de São Paulo” tem propostas altamente questionáveis para o Brasil e a América Latina.

Nossos dirigentes têm feito coisas apreciáveis no âmbito social, no sentido de produzir justiça e diminuir as desigualdades, embora essas ações não estejam isentas de críticas de assistencialismo e interesse eleitoral. Todavia, isso não significa que, em razão dessas conquistas valiosas, os líderes têm carta branca para fazer o que desejarem em outras áreas. Muito menos significa que nós, evangélicos e outros, porque apoiamos certas iniciativas, temos de apoiar todas as demais ou silenciar sobre elas. Do ponto de vista bíblico e teológico, é motivo de preocupação uma corrente política que possui mentalidade messiânica, que se considera a única solução para os problemas do país e que, por isso, acha que deve se perpetuar à frente do governo. A alternância do poder é uma das molas mestras da democracia. Considerar um regime, governo ou ideologia como insubstituível é uma forma de idolatria com a qual os cristãos conscienciosos não podem compactuar.

A responsabilidade social é uma tarefa inalienável dos cristãos, como discípulos de Cristo e como cidadãos. São muitos, sérios e legítimos os reclamos de nossa sociedade nesse âmbito. Porém, não é correto transformar a questão social em um absoluto que relativiza todas as outras preocupações, que justifica o uso de quaisquer meios, até mesmo radicais. Os evangélicos e os cristãos em geral precisam estar muito atentos ao que se passa no cenário nacional, pois o que está ocorrendo poderá ter repercussões históricas profundas e duradouras. A indiferença ou a cumplicidade cristã em outros países e contextos contribuiu para resultados aflitivos. A mesma Escritura que nos exorta a acatar os governantes também ensina que o nosso compromisso prioritário é com o Senhor e não com homens.


- Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de “Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira”, A Caminhada Cristã na História e “Fundamentos da Teologia Histórica”. Artigos de sua autoria estão disponíveis em http://www.mackenzie.com.br/historia_igreja.html

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