Preparar-se


Por Marina Silva em Revista Ultimato

Ao longo da história bíblica, é possível perceber que Deus tem apreço pelo tempo de se preparar para grandes momentos. Para citar alguns exemplos, foi assim com Moisés, no seio de sua mãe, onde adquiriu a consciência de pertencer ao povo de Deus; no palácio, onde aprendeu a enfrentar a força e os poderes deste mundo; no deserto, como pastor de ovelhas, onde recebeu de Deus a chama do amor – que arde sem consumir a matéria prima de sua luz – pelas ovelhas perdidas da casa de Israel. Só quando adulto e casado, recebeu sua missão. Assim foi com José, que teve de descer ao fosso antes de subir ao palácio.


Deus também pediu preparo a Noé. Em Gênesis 6.14, foi além e deu instruções. As instruções eram difíceis de se seguir – difíceis também de se apresentar aos familiares e vizinhos, porque não faziam sentido para a percepção das coisas que todos tinham. A missão era construir uma arca, com um tamanho monumental, em área seca. Noé certamente também não compreendia aquela providência que lhe foi ordenada, mas colocou-se na obediente posição de instrumento dos projetos de Deus e construiu-a conforme as prescrições recebidas.

Uma segunda missão ainda mais incompreensível foi dada a Noé, conforme Gênesis 6.19: levar na arca um casal de cada ser vivente para conservá-los. Nesse momento Noé foi feito guardião de toda a biodiversidade do planeta e teve de aprender a valorizar a bênção da convivência, sobretudo com os que não eram semelhantes.

De seu coração obediente à vontade de Deus e de seu zelo em seguir instruções veio a oportunidade de continuidade para todos os que constituíam o sistema planetário da vida colocada por Deus na terra.

Esse foi um grande momento. Precedeu a submersão do mundo que tinha se dedicado à violência contra a vida, para propiciar um recomeço. Nos dias atuais, por seu papel nos eventos que ocorreram, provavelmente Noé seria desqualificado. Seu fiel compromisso com a missão recebida talvez fosse percebido como algo extremista. Sua preocupação em cuidar de todas aquelas vidas e conservá-las seria chamada de “ecorradical” e “ecochata”.

Nosso mundo caminha agora para sua destruição pelas mãos e ambições dos próprios seres humanos. Chegamos à era do antropoceno. Desta vez, se vier – e virá, se nada fizermos –, o extermínio não significará um recomeço, uma segunda oportunidade. O professor Otto Scharmer, economista do Massachusetts Institute of Technology (MIT), concluiu que a produção de alimentos, com a tecnologia que é usada, já destruiu um terço das terras agricultáveis em toda a terra. Produzimos um alimento cheio de agrotóxicos e fertilizantes. No processo produtivo tiramos a força nutricional das melhores partes do solo para os lucros de algumas safras, enquanto enfraquecemos toda a terra, negando às gerações futuras a contínua renovação da colheita.

Caminhos estranhos para uma espécie que foi nomeada para a mordomia, para cuidar de tudo o que nos foi dado para cuidar, mas que pertence ao Senhor (Sl 24.1-2). Caminhos autodestrutivos, porque a degradação do solo, das águas e do ar para servir a interesses de uma minoria, sem que ninguém impeça, vai destruir a base da vida de todos.

Precisamos relembrar Gênesis 9.9, em que Deus fala de uma aliança com os que saíram da arca, animais e seres humanos, e com a descendência deles. Estamos todos aliançados com Deus – tudo que tem vida, tudo que respira. Portanto, os mordomos e a criação são aliados do Senhor e o uso descuidado de qualquer bem componente da riqueza que nos foi entregue é um ato contra essa aliança. Como ousaremos?

Marina Silva é professora de história e ex-senadora pelo PV-AC.

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